recentemente, dei para traduzir.
é algo que tenho feito ainda experimentalmente, mas com uma certa constância, um certo entusiasmo e um certo vigor ainda algo desconhecidos para mim, em se tratando do trato com a linguagem. essa matéria apenas semiviva da qual extraio o meu pão, com a qual armo o meu circo, de onde tiro todos os sentidos que me organizam e onde me abandono a todos os outros incapazes de me organizar.
traduzir, descobri, é algo prazeroso para mim. experimento uma alegria contrabandista em cruzar uma fronteira como alguém que traz consigo algo de escondido; algo que, no entanto, quer ser revelado. algo que nasce dessa travessia, e somente assim.
experimento uma satisfação de prestidigitador de circo, que com o passe de mágica certo, com a perseverança deliberada e diligente, repetida, paciente, cerimoniosa – o rigor por trás da fé, o rigor que é a fé em si –, reverencia o truque. o truque que se confunde com a mágica, a mágica que só se revela no truque. só existem truques e essa é precisamente a mágica.
experimento o contentamento de quem constrói as pontes, de quem suspende e inaugura, milagrosamente, antigravitacional, a passagem. a euforia de quem aposta nos caminhos.
experimento o alívio daquilo que é traduzido: de abandonar a pátria, a forma, os contornos e suas margens, abandonar a si, escapar. o alívio de ser outra coisa. algo mais estranho. algo mais frágil. e assim se refazer, estranho e frágil, mas um pouco mais perto de casa, um pouco mais perto do osso.
em meu sumiço e minha andança, encontrei, em uma livraria num café em bh, a antologia poética, recém organizada e traduzida para o português brasileiro por ayelén medail e cide piquet, de cristina peri rossi, poeta, escritora e também tradutora uruguaia, “nossa vingança é o amor”.
a nota dos tradutores começa precisamente com a tradução de um pequeno poema de cristina:
amar es traducir
—traicionar—.
nostálgicos para siempre
del paraíso antes de babel.
no tempo do mito, babel se erguia aos céus como um monumento à unicidade do mundo e dos povos nascidos do dilúvio, à indivisibilidade e à indiferenciação semântica do idílio; “e era toda a terra de uma mesma língua e de uma mesma fala” (gênesis 11:1). um mundo, portanto, em que tudo se entendia e nada, nem mesmo o amor, precisava ser traduzido.
algo, no entanto, tinha outros planos para os homens; e deus desceu dos céus e confundiu as suas falas, para que não se entendessem mais, para que se espalhassem por toda a face da terra. babel trata-se, portanto, de uma etiologia, de um mito fundador para a origem da multiplicidade de línguas na terra. babel vem do verbo hebraico בָּלַ֥ל (bālal), que significa misturar ou confundir.
sua queda inaugura no mundo, mais ou menos como uma tradução o faz, uma perda radical e uma transformação inevitável de uma experiência original. nostálgicos para siempre del paraíso antes de babel. se a experiência amorosa pura e indivisível podia então ser tão somente vivida, perdido o terreno de uma língua comum, perdido o paraíso, ela precisará ser necessariamente traduzida. amar es traducir. amar é inaugurar no mundo uma possibilidade a mais.
existe um provérbio italiano antigo que diz "traduttore, traditore", tradutor, traidor. seu sentido mais imediato talvez seja de que qualquer tradução, por mais fiel que se pretenda, trai algo da intenção do autor, trai algo do original.
porém, se não há retorno possível para um paraíso perdido, só nos resta traí-lo. se, nessas bandas de cá, nesta terra e para muitos de nós, é só quando se perde um paraíso, universal e indiferenciado, que as coisas começam a ficar realmente interessantes, só nos resta traí-lo. nossa vingança é o amor. amar es traducir — traicionar. só nos resta inaugurar no mundo uma possibilidade a mais.